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Fonte da imagem: Pátria, de Pedro Bruno (1909), óleo sobre tela |
Somos, oficialmente, há 197 anos uma pátria. Pátria amada, Brasil. E nesses quase dois séculos assistimos atônitos às mais diversas tentativas de dar um sentido de identidade coesa e una. Mas o conceito de pátria ou nação é relativamente recente na história da humanidade. Data do século XIX a partir das lutas de independência dos Estados nacionais protagonizados na Europa. Desde então se convencionou buscar no passado momentos históricos e narrativas fundacionais que fossem fontes aglutinadoras de um senso de pertença o qual os indivíduos pudessem compartilhar.
No romantismo brasileiro, buscamos no indígena o mito identitário original para suprir uma lacuna de diferenciação para com a herança lusitana, mas esquecemos que o poder imperial brasileiro, patrocinador dessa busca ensandecida, trazia em seu pretérito a mácula de massacres e dizimações de populações inteiras de tribos indígenas. Fez-se do índio mero acessório imagético sem uma efetividade de sua participação na constituição e construção de uma identidade nacional. Sequer a República foi capaz de sanar tais problemas. Na sanha do progresso cego e inumano, as armas republicanas varreram à baioneta os movimentos populares, renegando uma possibilidade de cidadania e identidade na construção da nova imagem de nação e ainda validou o racismo estrutural por meio de teses científicas, ampliando o abismo humano no país.
Ainda que se represente o Brasil sob a égide do verde-amarelo da bandeira republicana, herdeira da imperial, o nome pelo qual designamos esse imenso território possui raízes etimológicas que remetem a “vermelho como brasa”. Sim, somos vermelhos na origem. Era a tinta vermelha extraída do pau-brasil que tanto encantou os europeus que dizimaram nossas florestas em busca do lucro econômico. Vermelhas eram as peles pintadas dos indígenas quando da chegada dos colonizadores lusitanos, franceses, espanhóis e holandeses. Antes de ser pátria amada Brasil, essa terra era Oreretama, Pindorama, Ilha de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz e de todos nós! Ao vermelho originário agregaram-se o verde da Casa de Bragança, o amarelo dos Habsburgo e o anil republicano.
Contemporaneamente, como se o espectro de um patriotismo tosco e mesquinho, herdeiro do regime militar, tivesse despertado de seu sono tumular, ouve-se aqui e acolá frases acerca do senso de patriotismo brasileiro sempre subordinado a uma concepção única ou sob a égide de uma instituição ou outra.
Pátria não é, ainda que pareça, definível ou tutelada por essa ou aquela instituição. No modelo republicano, no qual pretensamente estamos inseridos, pátria é um conjunto de crenças, valores e instituições que dialogam, intercambiam e perfazem uma pluralidade necessária. Não bastaria conhecer a Lei 5.700/71, como se ela reduzisse a compreensão substancial dos símbolos patrióticos, se faltasse o conhecimento efetivo das vicissitudes históricas e temporais que solidificam determinadas escolhas.
Ser patriota não é apenas aquele que se coloca diante da bandeira com gestos e ações orquestradas e canta o hino com vigor. Ser patriota também é saber que essa mesma bandeira que tremula no mais alto céu está transvestida de sangue, dominação, guerras, alijamentos sociais pretéritos e contemporâneos. A criticidade não apequena ou invalida o senso de patriotismo, mas o lança no porvir que permite uma construção mais cidadã, fraterna e igualitária de uma nação que se pretende verdadeiramente humana.
É preciso ampliar o entendimento de pátria para além de uma compreensão reducionista, ideológica, ufanista e partidária. Pátria, como dizia Mário de Andrade, “é o acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der…”.
Mais importante que declamar “minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá” é saber que, se não houver políticas públicas efetivas na área de proteção ambiental e remanejamento do resíduos, em breve não existirá mais palmeiras, sequer sabiá que possa cantar. Mais efetivo que discutir “integração hodierna do indígena à sociedade” é saber se essa mesma “sociedade” possui políticas inclusivas, ou se, por trás de um discurso pretensamente democrático, ocultam-se interesses escusos e neocolonialistas.
Não é preciso estar “abancado à escrivaninha em São Paulo” ou em qualquer lugar desse imenso chão nomeadamente Brasil para, tal qual no poema Descobrimento na epígrafe acima, se surpreender com a ignota percepção de que “na escuridão ativa da noite que caiu, um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos, depois de fazer uma pele com a borracha do dia, faz pouco se deitou, está dormindo. Esse homem é brasileiro que nem eu”. Se a Constituição de 88, dita cidadã, já trazia em sua letra o princípio da dignidade humana e o dever do Estado em prover condições mínimas de oportunidades de emprego e habitação, percebe-se que contemporaneamente os deveres são negligenciados e até mesmo colocados em xeque.
Pátria não é arena de ringue das paixões políticas, da divisão “nós e eles”, como se os muros resolvessem litígios crônicos. Pátria é a ágora do debate claro e limpo de opiniões divergentes, mas que se irmanam na luta pelo direito coletivo e individual da condição mínima de qualquer ser humano: viver com dignidade.
Brasileiro não é apenas aquele indivíduo que se julga definidor de critérios, ou o que possui condições financeiras favoráveis. Brasileiros são todos aqueles que madrugam à espera do ônibus no subúrbio para trabalhar nos centros urbanos; são todos aqueles que se amontoam nos trens lotados e se esmagam num sistema de transporte precário porque a corrupção desviou o dinheiro; são todos aqueles que lutam contra o sol impiedoso para manter vivo o gado e a lavoura no semi-árido já que as políticas governamentais não são aplicadas de forma eficiente e eficaz; brasileiros são todos aqueles que cotidianamente são martirizados em filas de hospitais; na busca do alimento vital para sua prole; brasileiros são os negros carregados nos tumbeiros e que deixaram como herança apenas a força, vontade e esperança de um dia terem seus direitos garantidos minimamente; são os índios dizimados no passado e que no presente veem um futuro ameaçador de mortes e perseguições a repetir os erros históricos numa espiral infinita.
Não é preciso que uma nova Canudos (como se já não houvesse tantas nos subúrbios, favelas e periferias) se levante como um grito de clamor a nos acordar do nosso sono dogmático de uma compreensão tacanha e mesquinha de patriotismo. O amor à pátria não se exibe tão somente nos desfiles militares do tradicional 7 de setembro, mas também subsiste no carnaval da raça que ganha as ruas e exibe o caldo cultural mais genuíno e múltiplo de uma nação que se faz com suor e sangue.
Lindoberg Campos
Livre-pesquisador do Ateliê de Humanidades e doutorando em literatura (PUC-RJ)
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